
Clima: como não estar preocupade ?
É um tema recorrente nas consultas – a preocupação com o evoluir das alterações climáticas num mundo que parece estar em negação. A nível nacional as temperaturas atingidas chamam a atenção até das pessoas mais distraídas para estas questões. Os dados não deixam dúvidas:
“os recordes globais de temperatura estão a ser batidos todos os anos das últimas décadas e, apesar da variabilidade climática que faz com que haja oscilação regional entre anos, os nossos verões são cada vez mais quentes, mais secos, mais compridos, as ondas de calor são cada vez mais frequentes, mais quentes e mais longas.”[1]
A sensação térmica como a que tivemos estes dias (Santarém registou a temperatura máxima de 46,4ºC) causa mal-estar e percebemos o impacto que tem sobre a nossa saúde. Entre noites mal dormidas a preocupação com o estado do planeta acorda: para onde caminhamos? O que fazer? São questões que algumas pessoas que acompanho se colocam e que não são de resposta fácil, em particular no que diz respeito ao alívio dos sintomas que a consciência sobre esta temática poderá trazer. Ainda assim, tenho aceitado o desafio e partilho de seguida algumas ideias sobre o assunto esperando contribuir para o cuidado psicológico necessário para enfrentar esta realidade, articulando saúde e consciência sobre o tema. Para isso, cruzo aquilo que tem sido uma reflexão no meu trabalho clínico com a informação veiculada por ativistas climáticos e artigos existentes sobre saúde mental e clima.
A responsabilidade individual
Quando este tema surge em consulta está frequentemente associado a uma preocupação persistente sobre as consequências que as alterações climáticas terão no mundo, impactando as vidas de todes nós. Seja com base nos fenómenos que já estão à vista seja com base nas previsões apresentadas por cientistas e ativistas, os factos justificam as emoções mais difíceis que são despoletadas pela perceção desta realidade. Existe inclusive uma palavra para descrever este fenómeno – solastalgia[2] – criada pelo filósofo ambiental Glenn Albrecht, que nomeia o desconforto emocional, o sentimento de inquietude perante modificações negativas no ecossistema.
Junto com esta preocupação vem muitas vezes o sentimento de culpa, a pessoa começa a avaliar todos os seus comportamentos identificando a quantidade de ações que estarão a contribuir para o aquecimento global. Se reduzirmos o problema à escala individual, sim, é verdade, todes nós todos os dias contribuímos de alguma forma para o problema seja por via do que consumimos, do lixo que fazemos, da água que gastamos, e por aí em diante. Para aliviar a ansiedade que se instala a pessoa introduz mudanças no seu comportamento de modo a reduzir o impacto ambiental. Esta é uma mudança saudável na medida em que ela promove uma ação que parte de um lugar de consciência. Do ponto de vista psicológico, poderá ajudar na redução dos sintomas pois a pessoa transforma o medo em ação e passa a assumir alguma responsabilidade pela mudança. O problema aqui poderá surgir quando isso passa a condicionar a sua vida. Ou seja, o seu papel na resolução do problema passa a ser determinante, então, não há margem para um comportamento que não tenha em conta a situação global. Isto pode instalar-se ao ponto de afetar as suas relações, a sua autoestima, as suas escolhas de vida. Dando um exemplo concreto, uma pessoa que eu acompanho, expatriada, debatia-se sobre a possibilidade de voltar ao país de origem para um evento familiar importante porque isso implicaria ir de avião e estaria dessa forma a contribuir para as emissões de carbono daquele voo. Não ir ao evento em questão terá um impacto emocional sobre esta pessoa e sobre a sua relação com pessoas significativas e, como consequência, na sua saúde mental. Numa situação como esta acredito que é preciso desenvolver uma visão mais flexível sobre o papel que cada pessoa tem a nível individual, de modo a preservar a sua saúde, e para isso penso ser importante enquadrar a problemática num todo, ter um olhar sistémico sobre este fenómeno.
Um problema sistémico
O problema das alterações climáticas remonta, pelo menos, à revolução industrial e a todas as mudanças que significaram um aumento da produção de gases com efeito de estufa. A extração e uso de combustíveis fósseis para alimentar a produção de empresas multinacionais continua a ocorrer com o aval dos decisores políticos e numa lógica lucrativa. A última conferência do clima focou-se em apresentar soluções financeiras para apoiar os países mais afetados pelos desastres ambientais deixando de fora as mudanças necessárias para o controlo da subida da temperatura, cortes nas emissões de gases com efeito de estufa e limitação gradual de combustíveis fósseis.
São vários os coletivos que lutam em defesa do clima e que, baseando-se na investigação, cruzando dados científicos com políticas consequentes, propõem respostas que poderão ser aplicadas para inverter o processo em curso. Ou seja, são conhecidas as mudanças positivas a serem implementadas, mas falta vontade política para que elas ocorram.
Aquilo que aqui apresento não é novidade e, muito menos, é animadora. Mas pretende lembrar que as mudanças necessárias para travar a crise climática são de ordem mais macro do que micro. Nesse sentido, a força necessária para que ela ocorra tem mais a ver com a união coletiva para que medidas efetivas sejam postas em prática. Essa força coletiva está a ser construída quer se esteja organizade quer se esteja a ter uma conversa sobre o tema com uma pessoa amiga contribuindo para o ganho de consciência sobre a realidade que enfrentamos. Cuidarmos uns dos outros como de nós próprios também deve ser encarado como parte da mudança. Há uma dialética que deve ser tida em conta de modo a não cair numa lógica de mero sacrífico individual pela causa.
Indivíduo, sistema, em que ficamos?
Estar informade sobre a crise climática traz necessariamente preocupação. Se estivermos preocupades com alguma questão para a qual não temos solução vamos sentir um mal-estar psicológico e emocional. Quando o tema é algo tão grande como o clima, o ambiente, o estado do mundo em que vivemos, a sensação pode ser de angústia. Acredito que é possível encontrar um equilíbrio entre comportamentos conscientes e uma visão do todo. O alívio deste tipo de sofrimento passará por agirmos, dentro do que nos é possível, para contribuir para a mudança. Uma ação consciente de que o problema que enfrentamos é muito grande e só poderá ser resolvido unindo forças para que sejam implementadas medidas que travem o processo em curso.
Juntar-se a um coletivo, fazer parte de uma comunidade com o objetivo de refletir sobre o tema, contribuir para a consciencialização das comunidades, participar numa manifestação. Apoiar propostas políticas que combatam o problema. Criar grupos de cuidado e debate sobre alterações climáticas. Partilhar ideias com uma pessoa amiga, refletindo sobre o tema, dando e recebendo acolhimento e escuta. Manter uma atitude compassiva para consigo mesmo, lembrando que é importante manter uma atitude flexível no que diz respeito ao grau de responsabilidade que nos atribuímos enquanto indivíduos. Precisamos cuidar de nós e de quem está ao nosso lado para que juntes possamos cuidar do planeta.
Como dizia num cartaz feito pela filha de uma amiga minha, para uma manifestação contra as alterações climáticas, “o mundo é importante” e o mundo precisa de cada um de nós, com saúde.
[1] E se este for o verão mais fresco do resto das nossas vidas? – Expresso
[2] “Há uma epidemia de doenças mentais associadas ao clima” | Crise climática e saúde | PÚBLICO (publico.pt)