
Ninguém nasce mulher
“On ne naît pas femme: on le devient.” Simone de Beauvoir
Inicio este texto com uma frase da autora d’O Segundo Sexo, obra que revolucionou o pensamento sobre a condição das mulheres. Nas poucas palavras que compõem esta frase é espoletada a reflexão sobre uma distinção necessária para compreender os condicionamentos da nossa existência, entre sexo biológico e género (pensamento mais recentemente elevado pela filósofa Judith Butler). Este último precisa ser entendido com base na construção social que representa, ou seja, de que as especificidades da existência do género feminino não podem ser analisadas sem ter em conta o que se espera das mulheres em sociedade. Essa expectativa, apesar de algum progresso desde os tempos de Beauvoir, ainda é da mulher enquanto ser subjugado à existência do homem. Ela é o “outro” pois a definição da humanidade inteira pode ser reduzida à expressão “o Homem” (!)*. Pertencer ao género feminino é estar logo à partida em falta pois estaremos sempre aquém da existência dominante que organiza a sociedade.
Quando o tema é saúde mental todas as pessoas ficam a perder com isto, mais as mulheres do que os homens é claro, pois quer queiramos viver dentro ou fora destas expectativas estaremos sempre num lugar de sofrimento. Carregamos a tensão interior de quem busca a liberdade mas é encaminhada para o confinamento. Educadas para o cuidado, para agradar, para empatizar, sentimo-nos devedoras quando tentamos fazer de forma diferente, se tivermos a possibilidade de o fazer, a culpa toma conta.
Acompanho mulheres exaustas, em diferentes idades e situações. O que têm em comum? A preocupação constante, o modo “fazer”, antecipar tudo, garantir que tudo corra bem para as pessoas à sua volta nos diferentes papéis que desempenham. Penso numa mulher que não se reconhece desde que foi mãe pois carrega todas responsabilidades da casa e dos filhos, uma jovem que não consegue ser mais assertiva pois receia que a julguem de autoritária, uma mulher que não consegue pôr limites pois não quer parecer que é egoísta, entre outras dificuldades que marcam a vivência delas e que, além das características de personalidade, precisa ser contextualizada naquilo que todas interiorizamos que seria esperado de nós neste mundo. Num estudo sobre saúde mental, cujos resultados foram publicados no ano passado, retiramos os seguintes dados: “A ansiedade, problema mais reportado, afetou 43% das mulheres, o dobro do registado entre os homens. As mulheres são também quem mais sofre com stresse (35% face a 21%) e de dificuldade em dormir (35% face a 21%).”*
A mulher livre, independente, confiante é ainda uma miragem ou atingida por uma ínfima minoria. A realidade é que se as dificuldades económicas são transversais a qualquer género, quando olhamos para o caso específico das mulheres é flagrante a vulnerabilidade em que nos encontramos e que contribui para o sofrimento psicológico em que vivemos. Dados do pordata, publicados no âmbito do Dia Internacional da Mulher, confirmam a situação injusta que ainda vivemos: “as mulheres continuam a ser alvo de desigualdades no mercado de trabalho: recebem menos, têm mais contratos precários, maior risco de pobreza e ocupam menos cargos de liderança. Na União Europeia, Portugal é um dos países em que há mais mulheres a trabalhar (e a tempo inteiro).”*
As mulheres são diversas e a opressão que sofremos será melhor compreendida se olharmos para as várias camadas que se intersectam com base na cor da pele, na orientação sexual, na identidade cis ou trans, na condição física ou situação socioeconómica. A discriminação que vivemos de acordo com as camadas que se cruzam na composição da nossa identidade representa uma experiência unificada na pessoa que precisa ser compreendida como tal. A validação dessas especificidades é essencial para arrumar o espaço interno rumo à abertura de respostas que reconfortam e aliviam o sofrimento.
O caminho para a emancipação ainda será longo por isso precisamos de toda a solidariedade e compreensão para dar passos em frente, nesse sentido, a um nível individual e coletivo, com mais segurança.
*homem – Dicionário Online Priberam de Português
*Mulheres e jovens são quem mais sofre com ansiedade e stresse – Observador